terça-feira, 1 de setembro de 2015

O quadro

O QUADRO


Maria do Céu Coutinho Louzã
(São Paulo - SP)
     


Findava a tarde. Como de costume, ele levantou-se do banquinho - um caixote adaptado. Deu dois passos para trás a fim de examinar o seu trabalho. Havia passado a tarde, pintando o que achava que seria um trabalho original. Mas queria ter a certeza que havia criado um bom quadro. Uma tela onde se via ao longe o mar, com suas ondas espumantes. Num canto o céu avermelhado pelos raios de sol, que se escondia atrás das montanhas, no fim da baía. Reproduzia a praia, que permanecia tão solitária e diferente da movimentação que havia nos fins de semana. Na orla da praia um quiosque gracioso com a cobertura de sapé. Sobre a palha do quiosque, pousado, um pássaro solitário: uma coruja!
Observou o seu quadro. Pensativo, procurava convencer-se de que a tela seria apreciada. 
Ao seu lado King, um pastor alemão, seu fiel companheiro. Passara algumas horas dormindo. Não bem dormindo, porque vez por outra, abria os olhos e verificava se o dono já estava pronto para o passeio de todo o final de tarde. Mas agora, ao vê-lo, movimentando-se, estirou o corpo e bocejou feliz. Finalmente aproximava-se a hora do passeio diário até à praia. Assim, começou a rodear as suas pernas como a avisá-lo que era hora de encerrar o seu trabalho, guardar os pincéis e partirem para a caminhada de todos os dias...
Mas... e o quadro?
O pintor olhou e pensou como seria bom se o vendesse no final de semana. Como em todos os domingos, ele iria expô-lo na feirinha de artes e artesanato no largo da matriz. Lá, onde se reuniam vários artistas, ele já havia conseguido vender algumas de suas telas. Jovem ainda, todas as vezes que vendia algum trabalho pensava que talvez fosse bom voltar para o lugar onde havia nascido e se criado. Quem sabe comprar um terreninho perto da roça dos seus pais, casar, ter uma  vida como a deles ou talvez morar na cidade e vender suas telas... Eram pensamentos  e sonhos de um rapaz jovem e solitário. 
Mas como iria deixar aquele mar tão lindo que o inspirava. Adorava ver aquela imensidão de água, sempre em incansável movimento. Isso o deixava intrigado. Ele se perguntava como era possível amanhecer e anoitecer e poder encontrar de novo aquela beleza. As ondas espumantes que vinham - ora ferozes, ora calmas - se desfazer nas areias da praia. Toda aquela grandeza parecia escravizá-lo. Não tinha coragem de deixar toda uma paisagem que não tinha dono, mas que ele podia aprisioná-la, com seus pincéis e tintas, nas suas telas. Grandiosa, que não pertencia a ninguém, mas que ele, no seu íntimo, pensava ser um tanto dono. Era a fonte de inspiração para o seu trabalho.
Mas e o quadro? Olhou mais uma vez. E pensativo, queria decidir o que fazer.
Era empregado em uma das inúmeras casas de veraneio, naquela praia muito concorrida no verão e o velho patrão é que o havia ensinado a pintar. Descobrira nele a vocação e o desejo de ser artista. Sim, porque ele se considerava um artista. O patrão comprara-lhe as primeiras telas, pinceis e tintas e o ensinara um pouco de desenho e depois como misturar as tintas e cores e passar para a tela tudo o que ele achasse interessante. Achava que ele tinha sido seu padrinho. Pena que ele já não vivia para poder apreciar os seus trabalhos. Pensava sempre que ele teria gostado de ver o sucesso do seu aluno. 
     Mas assim mesmo depois de sua morte, a família quis que ele continuasse como caseiro, cuidando da casa. Durante a semana ainda fazia pequenos serviços, em algumas casas da praia. O seu trabalho era abrir as janelas, arejar as casas, varrer as calçadas  e quintais, regar os jardins se não chovesse e em algumas dar a  comida para os cães. Não era um trabalho pesado. Deveria manter as residências arrumadas para quando os donos chegassem e eventualmente avisá-los se acontecesse alguma coisa anormal. Nos fins de semana atendia a família da casa onde era empregado, sempre que ela vinha para passar alguns dias ou nas férias quando todos  permaneciam mais tempo.
Mas sentia-se solitário. Ainda era jovem. Tinha sido liberado do serviço militar porque havia excesso de contingente no ano em que deveria se apresentar. Quem sabe deveria casar-se. Mas como sustentar uma família com o que ganhava? Sonhador, o seu desejo era poder pintar e naturalmente vender! Vender muitos quadros e ficar um artista rico e famoso! Afinal o seu falecido patrão sempre dizia que ele tinha um pendor artístico e que seria bem sucedido se continuasse pintando e vendendo suas telas. Novamente olhou para o seu trabalho. Estava preocupado. 
No dia anterior, quando fazia o passeio de todas as tardes  a caminho da beira do mar, com muito espanto viu uma coruja sobre um dos quiosques. Olhou bem. Fixou melhor os olhos para ter certeza do que estava vendo. Uma coruja de dia! Ela devia estar muito confusa, ali pousada na palha do quiosque.  
Na sua terra sempre ouvia o seu barulho à noite. Ouvia falar que era um pássaro que só enxergava no escuro e saia para caçar à noite. Ali pousada no quiosque, ao cair da tarde! A coruja com a cabeça redonda, uma  cara achatada, olhos espalmados, era muito diferente dos outros pássaros. Parecia até que ela o observava  atenta, girando a cabeça, acompanhando-o na sua ida até o calçadão. Era um pássaro tão engraçado! Também devia estar espantada por encontrar alguém na praia naquela hora. Que estranho... parecia olhar para ele. Talvez também surpresa por vê-lo ali na praia.  Ninguém imaginava encontrar uma coruja durante o dia. Havia escapado da noite escura que devia ser o seu ambiente. Essa deveria ser uma coruja que talvez estivesse perdida ou então era muito curiosa...
 Mas ele a havia encontrado na tarde anterior e ela ali estava reproduzida como a havia visto: empoleirada na palha do quiosque da praia, e agora, enfeitando ou melhor, confundindo a paisagem do seu quadro. Havia sempre muitos pássaros pela praia, principalmente nos fins de semana. Tentados pelas sobras de alguma gulodice deixada pelos banhistas ou talvez curiosos, ao ver tanto movimento, no espaço que eles dominavam durante todo o tempo na praia solitária. 
Mas uma coruja! Nunca...
Ele achara interessante pintá-la como a tinha visto. Porém agora estava indeciso. Não seria estupidez de sua parte colocar uma coruja em um quadro, onde os raios de um sol se pondo ainda davam claridade à paisagem? 
Já decidido a fazer o seu passeio diário, chamou King, o seu companheiro impaciente e dirigiram-se para a porta. Mas continuava  preocupado e indeciso.
Mais uma vez olhou para trás. Hesitava...  Pensou um pouco. Olhou mais uma vez para a tela...
Decidido, deu meia volta. Apanhou pinceis, as tintas que estavam na paleta e em rápidas pinceladas foi passando por cima da coruja, apagando-a. 
Restou o céu, o mar, o sol se escondendo no poente e no ermo da tarde somente a palha de um quiosque solitário.
Afinal quem iria acreditar numa coruja na claridade do dia!

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