terça-feira, 1 de setembro de 2015

Conto urbano - ou F20.0

CONTO URBANO ou F20.0

Regina Lúcia da Costa Araujo
(São Paulo - SP)


Alguns dias depois, o que havia sido dito fora desconsiderado. Mais uma vez sentiu-se à parte do mundo, incompreendido talvez... Não importava. O que importava é que não arredaria o pé, nem um milímetro, de suas convicções. Já era tempo de se permitir ser ele mesmo... E daí? Quem quisesse falar, que falasse: ele não daria ouvidos mesmo.
Aprumou-se e seguiu o caminho que se abria a sua frente; tinha uma longa viagem a sua espera, certamente não iria querer ficar ali, provincianos demais, pensou, iria procurar um lugar onde suas ideias fariam sentido, precisava disto... Será? Será que ainda precisava ser ouvido, compreendido e acatado? Talvez, pelo menos mais uma vez nesta vida para sentir-se pertencendo a alguma coisa; a última vez que experimentara esta sensação fora há muitos anos, mas, não era hora para lembrar disto.
O céu começava a salpicar suas estrelas, precisava procurar abrigo para a noite. Desta vez, mais uma vez, dormiria ao relento tendo o céu por cobertor. Cansado, muito cansado, estendeu o corpo no chão, logo adormeceu. 
Os carros dirigidos em alta velocidade, barulhentos, barulhenta a cidade... Todos os dias ela passava naquele lugar... Todo dia via que sob aquele cobertor existia um alguém e se afastava. Às vezes pensava em parar, às vezes pensava em telefonar, chamar alguém para ajudar mas sempre desistia, ou melhor, adiava (pelo menos era o que dizia a si mesma), afinal tudo isto era apenas uma paisagem urbana, coisas de cidade grande e o problema não era dela e sim coletivo, cabia às autoridades fazer algo, não a ela.
Assim conseguia esquecer e ir trabalhar, cumprir seu dia até a manhã seguinte... O mesmo cobertor, no mesmo lugar, o mesmo cenário, a mesma angústia fugaz e o mesmo esquecimento do que via, até que um dia... Não havia mais cobertor e o pretenso alguém virou ninguém... Ufa! Que alívio! Não precisava mais assistir aquela cena todas as manhãs. Mas, teria o alguém virado mesmo ninguém? Ou, o ninguém obteve a oportunidade de voltar a ser alguém? Ou será que simplesmente mudara de lugar?
O alguém, aquele do cobertor, na verdade há muito já havia deixado de existir... Na verdade, se existira foi por um certo período quando inda tinha nome e por ele se reconhecia. Hoje, esse alguém se multiplicou em muitos outros com cobertores por cama e luzes da cidade por estrelas além de convicções próprias tão legítimas e autênticas que não cabem na nossa compreensão e uma vez que aquilo que não entendemos desconsideramos são seres desconsiderados, espalhados, não existem...
VIVA SÃO PAULO.  

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