Resultado dos concursos literários da
XIII Jornada Médico Literária Paulista
GANHADORES DO CONCURSO DE PROSAS
1º Lugar
Troféu "O Bandeirante"
Troféu "O Bandeirante"
LUIZ JORGE FERREIRA
Conto: "O QUADRO"
De Lisboa a Londres fui andando. A
nado fui de Belém a Macapá. Voando fui de João Pessoa a Quixadá. Hoje neste
apartamento pequeno em que as paredes, pintadas de roxo, têm muitas manchas
amarelas provocadas pela umidade Amazônica. É que sei que o tempo passou,
enquanto eu calçava e descalçava os sapatos surrados. Manchou-me também.
Hoje corro descalço, olhando de
suas janelas que dão para a Avenida Ernestino Borges, as da frente. A da cozinha,
abrem-se para a Rua Iolanda Marcucy. A do banheiro, dela se vê a Rua 14 de
Março, e a da cozinha tem a paisagem da rua Coronel Lisboa, com o telhado descorado
da casa do Braz.
Estou
em meus oitenta anos. A cabeça já funciona aos solavancos e os cabelos, estão
úmidos, produto desta fina garoa, que teimosamente chove sobre mim. Ela me
abriga a usar permanentemente um guarda chuva aberto, mesmo dentro do
apartamento.
Caminho
devagar, entre os dias e as noites. São seis aparelhos de televisão ligados,
cada um em um canal. Oito rádios sintonizados nas oito maiores capitais do mundo
que enchem a casa de um barulho estéril de Mandarim, Russo, Árabe, Japonês,
Hebreu, Grego, Inglês e Italiano. Tenho dois sois, um amarelo e outro castanho,
que se reflete em um jogo de espelhos, que dependurei entre a cômoda e a
estante cheia de bíblias sempre movimentadas as suas paginas por um amontoado
de ventiladores, que mantém a temperatura da sala quase meio grau abaixo de
zero. Caminho devagar entre as esculturas Maias e Incas que coabitam comigo na
sala, entre cabeças empalhadas de orangotangos e chimpanzés. Por isso perco com
facilidade meus chinelos. E quando vou pé ante pé para o local em que guardo
meus discos e os ponho na vitrola em trinta e oito rotações por minutos rangem
as tábuas do assoalho. Fazem dueto com os estalos de minhas articulações, quase
enferrujadas. Ouço Mario Lanza em um dueto estranho com minhas próprias
barulheiras. Abro as janelas muitas vezes e o ar de fora bate na minha própria
umidade e volta criando um pequeno ciclone que apelidei de “Equadorzinho”.
Um
dia lendo uma das dezenove Enciclopédias e fazendo cálculos com uma régua
fisiogeográfica percebi que os trópicos de Câncer e Capricórnio cruzam-se aqui,
talvez por isso, este prurido que me castiga determinados dias do mês, e que me
fez ficar amigo de uns pelicanos, que também se coçam.
Eles
pousam na janela, aquela que abre para a Avenida Ernestino Borges, em alguns dias do
mês. Comecei a morar aqui quando fiquei viúvo. Ela morreu e deixou um enorme
vazio que preenchi com garrafas de Rum e desenhei sua silhueta. Para formar o
par de peitos foram necessárias mais de cinquenta garrafas. Era uma mulher
abastada que deu-me dezoito filhos e pretendia dar-me mais se não se
houvesse tocado fogo lixando tanto as
unhas. Quando fiquei só pretendia mudar-me o mais cedo possível, mas a amizade
com as águas vivas do lago do Ibirapuera e a admiração pelas borboletas do
Pacoval foram prolongando minha estadia. Hoje sou parte deste Quadro. E olhando a
pintura de um quadro feito por Salvador Dali, dependurado no vão entre a porta
do nosso quarto e o início da escada que nunca subi, nem sei aonde vai dar. É
que percebo que envelheci.
Não
tenho mais vontade para trocar de roupa e agora me cubro, com pelos espessos e
longos cabelos, que pouco molho, mas estão sempre úmidos.
Como muito pouco e durmo quase
nada. Quando a saudade aperta abraço-me a imagem dela feita de garrafas e assim
fico por um tempo. O que tem me cortado demais o peito e o púbis. Mas eu não
ligo. O que me incomoda são os filhos. Estes que estão empalhados pelo corredor
entre as cabeças empalhadas de Orangotangos e Chimpanzés.
Amanhã
irei para Osasco aonde enterrarei o Quadro.
**************
SHEILA REGINA SARRA
Crônica: "A ENTRADA DO SÍTIO"
Assim
que cheguei, fiquei perplexa. Na entrada do sítio ao lado, onde sempre houvera
um portão amarelo circundado por uma cerca viva de flores coloridas, havia
agora um feroz animal, escorraçando os eventuais visitantes. Seu latido denunciava
qualquer um que passasse por lá. Não era grande, mas intimidava, rosnando de forma
ameaçadora. Não convinha zombar daquela fera. Ao menor movimento, ele reagia
com brutalidade de forma irracional.
Estava no interior de um jipe, bem
protegida pela carroceria, mas, mesmo assim, me sentia incomodada com a
violência explícita do animal. Estava solto no interior da propriedade e a
única barreira que o separava do exterior era um portão de ferro com alambrado.
Seu comportamento agressivo acabou com o singelo ambiente bucólico do campo.
Não havia como silenciar a fera; latia por qualquer motivo: um pássaro, um
réptil, um fruto que caísse da árvore, um outro animal passando; uma bicicleta;
um carro.
Havia tempos que não visitava o
sítio da família e desconhecia os novos vizinhos. Com esse cachorro na porta,
não passavam a impressão de desejar ter contato com quem quer que fosse. A
ideia de uma aproximação dissipava-se logo, ante a impressão de descortesia e
animosidade provocada pela presença daquela fera. Pareciam querer aniquilar
qualquer visitante que se atrevesse a passar perto do portão.
Nunca consegui ver quem eram esses
vizinhos estranhos. Escolheram viver reclusos, reservados de qualquer contato
com estranhos, entranhados em seu castelo secreto. As crianças criavam estórias
mirabolantes sobre aqueles incomuns moradores, fantasiando à vontade. Apesar do
apelo das mães para manter distância, procuravam descobrir o que se passava por
lá. Subiam em árvores para espionar, usavam binóculos de longo alcance,
mantinham guarda perto da entrada para ver se alguém chegava ou saía. Mas, nunca
descobriram nada.
Todos tinham curiosidade, mas
ninguém tinha coragem de se encaminhar até a portão e tentar um contato. Um
dia, porém, aconteceu o pior. Uma das crianças pequenas havia desaparecido.
Depois de muitas buscas, começou a prevalecer a ideia de que pudesse ter
cruzado a cerca e entrado na propriedade ao lado. Os vizinhos se juntaram à
família desesperada para ajudar a resolver a alarmante situação. Não havia
alternativa, o jeito era se aproximar da ameaçadora propriedade e tentar um
contato. Sentindo-se ameaçado, o cachorro latia e pulava com estardalhaço.
Depois de muito barulho, percebemos a aproximação de um vulto. Cada um
fantasiava a seu modo. Todos se perguntavam o que poderia
acontecer a partir desse momento. Como seria o estranho vizinho. Depois de
alguns minutos, percebemos, pela forma como se locomovia, que parecia ser uma
criança. Com a aproximação do dono, o cachorro aquietou-se, afastando-se do
portão. Enquanto acompanhávamos o desenrolar da cena, a menina desaparecida subitamente
retornou, reaparecendo no meio de todos. Ninguém viu de onde veio; apenas
notaram a sua presença quando já estava lá. As atenções se voltaram, então,
para o reencontro da mãe aflita com a filha imprudente. A alegria era
contagiante. Quando se lembraram do vizinho, já era tarde demais. O cachorro
voltara a latir e o vulto da criança desaparecera. Não havia nenhum rastro do
incomum vizinho.
Muitas explicações foram criadas em
cima dessa estória. Na verdade, ninguém sabe, nem nunca viu o que se passava dentro
daquele sítio. Somente o cachorro podia ser visto naquele lugar. Nada mais,
além das lendas que se edificaram em cima do desconhecido.
*********************
MARCOS GIMENES SALUN
Crônica: "VISITANDO LA CHASCONA"
Foi
no ano em que nasci que eles começaram a construir aquela casa cheia de
escadas, passagens secretas, portas pequenas e teto baixo, lembrando o interior
de um navio. Por aquele tempo Pablo ainda mantinha em segredo o acalorado
romance que iniciara com Matilde na primavera de 1946, quando se encontraram
pela primeira vez em um concerto no Parque Florestal de Santiago.
Certo dia, caminhando de mãos dadas
pelas ruas do bairro Bellavista eles se depararam com aquele terreno à venda,
aos pés do cerro San Cristóbal. Ficaram encantados com a água que corria pelo
terreno, "escrevendo em seu idioma entre a folhagem das framboesas que
guardavam o lugar com sua ramagem sanguinária", como disse Pablo algum
tempo depois. Compraram o lote de terra e encomendaram a construção a Germán
Rodríguez Arias. Quando olhou para aquele terreno tão inclinado e íngreme, o
arquiteto catalão imaginou o castigo que teriam os habitantes daquela casa,
condenados a subir e descer escadas. Ele imaginou a casa orientada para o sol,
mas Pablo a preferiu com vistas para a Cordilheira. Ao final, foram tantas as
intervenções do poeta, que do projeto inicial pouco restou.
Quando ficaram prontos o living e o
pequeno dormitório, ali foi morar Matilde, sozinha e extremamente zelosa pelo
ninho de amor secreto que aos poucos se instalava, cavando com as próprias mãos
o chão onde agregava ao jardim novas mudas de paixão em forma de árvores e flores.
E assim foi até fevereiro de 1955, quando Pablo colocou um fim em seu casamento
com Délia e mudou-se definitivamente para La Chascona, que aos poucos ia
ganhando novos cômodos. Estes surgiam de forma pouco convencional, segundo a
sensibilidade e a inspiração dos amantes. De uma simples janela, uma poltrona e
um quadro que gostava especialmente, Pablo fez surgir um novo cômodo, lembrou
certa feita o arquiteto Carlos Martner, que dedicou-se à casa a partir de 1958.
Enquanto caminhava vagarosamente e
em silêncio pelos cômodos eu ia me deparando com a presença dos amantes em cada
objeto e em cada obra cuidadosamente dispersos pelos ambientes. O quadro em que
Diego Rivera perpetuou a imagem dupla do rosto de Matilde e sua cabeleira ruiva
e volumosa onde está também o perfil de Pablo, parece lembrar a todos a razão
do nome daquela casa tão peculiar. Por todo canto e sobre cada móvel a poesia
está presente, ora num arranjo, ora num verso rabiscado pelas mãos de Pablo. O
enorme urso de pelúcia ainda guarda silenciosamente a intimidade do leito dos
amantes. A sala de jantar com sua louça colorida permanece pronta e à espera de
convidados. Assim também está o bar de verão, com o imenso leque cheio de
retratos e recordações na parede atrás do balcão e o enorme e debochado par de
sapatos displicentemente deixado no chão.
Em 23 setembro de 1973 Pablo morreu,
dias depois do golpe militar que depôs Alliende. Foi velado por Matilde e
alguns poucos amigos no living com vidros quebrados de La Chascona, a casa que o
poeta tanto amou, e que naquele momento se encontrava lamentavelmente saqueada
e vandalizada pelos ecos da revolução. Para que saísse o féretro foi preciso
colocarem tábuas sobre a lama que encharcava tudo. Contudo, La Chascona, que
parecia ter morrido também naquela ocasião, ressurgiu como Fênix, graças à
persistência, paixão e dedicado trabalho de Matilde, que ali continuou morando
até sua morte, em 1985.
Minha rápida e efêmera visita também
já estava terminando. Depois de deter-me alguns minutos mais apreciando obras
de arte, uns poucos livros, além de inúmeras medalhas e prêmios, dentre eles o
Nobel de Literatura de 1971, guardados cuidadosamente numa estante, deixei a
última sala de La Chascona.
Com alguma melancolia atravessei a
porta de saída que dá acesso à sossegada e bucólica calle Fernando Marquez de la Plata. O silêncio parecia dizer-me que
os vizinhos do casal ainda dormiam àquela hora da manhã. Caminhei mais alguns
passos e votei-me para olhar ainda uma vez para a fachada de La Chascona. Pablo
Neruda e Matilde Urrida, abraçados numa das sacadas, acenaram-me sorridentes e
felizes. Acenei de volta. Depois ajeitei o cachecol, meti as mãos nos bolsos do
casaco e desci até a Plazuela Camilo Mor de onde enveredei novamente pelas ruas
geladas e inundadas pelas avermelhadas folhas dos plátanos de Bellavista.
Santiago,
11 de julho de 2015
_______________
"Embora isto não interesse a
ninguém, somos felizes (...) Matilde canta com voz poderosa as minhas canções.
Eu dedico-lhe quanto escrevo e quanto tenho. Não é muito, mas ela está
contente. Vejo-a agora a enterrar os sapatos minúsculos na lama do jardim e, em
seguida, a enterrar também as suas minúsculas mãos na profundidade da planta.
Da terra, com pés e mãos e olhos e voz, trouxe para mim todas as raízes, todas
as flores, todos os frutos fragrantes da felicidade."
Pablo Neruda,
in "Confesso que Vivi"
****************************
Nenhum comentário:
Postar um comentário