terça-feira, 1 de setembro de 2015

Saudação ao reencontro

SAUDAÇÃO AO REENCONTRO

Josyanne Rita de Arruda Franco
(Jundiaí - SP)


Ouço o badalar da sineta do cemitério. As horas avançam e o dia escurece rápido no inverno, já não vejo visitantes circulando nas alamedas de mármore e estátuas. O cair da tarde parece dizer que o dia foi feito para visitas e a noite para os morcegos.
Residir há muito tempo no mesmo prédio, com vista panorâmica para a cidade do inexorável destino, habitua-nos a contemplar a paisagem sem repudiá-la ou temê-la; as circunstâncias sempre foram favoráveis para apreciar aquelas pequenas construções, sem pensar no protagonismo residencial nalgum canto daquelas ruelas brancas sempre bem cuidadas.
  Evidentemente, chega um dia em que a fantástica máquina chamada corpo humano dá sinal de desgaste, engasga, falha e se debilita; mas outra vez se apruma, teimando em prosseguir. Apesar da vitória da vida, nada mais pode ser visto como antes. Definitivamente o tempo deixa de ser igual.
A pequenez como indivíduo se apodera do pensamento. É tardia a hora de perceber que o mundo vai continuar sem a participação especial do pobre vivente, que tudo se acomodará entre o noticiário da manhã e o da noite. Incrível é constatar que a necessidade de assumir e arcar com diversos compromissos realmente não faz sentido. 
Quanta estupidez é a vaidade que nos faz crer merecedores de tal importância: esquecemos que somos apenas seres humanos nos contorcendo em afastamentos de tudo o que é próprio e pessoal, em triste e solitária ocorrência. 
A pergunta vem, finalmente: quando deixei de ser eu?
Embora pareça que tal questionamento transcende a razão, parece não ser assim, ao considerarmos que dentro de nós existe um recôndito misterioso armazenando um fenômeno importante e singular, que nos assoma quando amamos alguém ou gostamos de lembrar alguma sensação boa e marcante. O fenômeno se chama saudade. 
Inexplicável em seu arrebatamento, incompreensível quando evoca um momento sublime que passou, a saudade é por diversas vezes banalizada em sua essência.
No entanto, quando se enfrenta um momento de dúvida com possibilidade de morte é que se conhece a saudade! Durante o tempo que transcorre no hospital, os olhos fechados não deixam que os pensamentos sejam com nenhuma imagem da faina diária; mergulha-se na memória a resgatar lembranças, matérias de estudo, livros, filmes assistidos, situações inusitadas e surpreendentes. Coloca-se emoção, mas se pergunta sobre uma resposta diferente... Um tempo pensando e refletindo sobre muitas coisas.
O amor pela família e a possibilidade de deixá-la dói, oprime o peito com a angústia pesarosa do adeus e encharca de lágrimas a alma, não há dúvida. Mas é a recordação de quem se é de verdade, aquilo que conhecemos de nós mesmos que vem na lembrança. 
Emerge a pureza inicial, sem artifícios ou teorias, sem mesuras ou dissimulações. A criança interior ressurge com o desamparo que lhe é peculiar, tem medo e quer colo; o adolescente reaparece, tenta vencer o medo infantil mostrando a bagagem com seus sonhos vivos... e sufocados. O adulto, enfim humilde, torna-se enfim disposto a ouvir.
Há uma conversa franca entre todos naquele recôndito misterioso que cada um traz dentro da alma.
Cenas e cenários desfilam no diálogo: afetos idos, oportunidades que se perderam, erros e acertos. O inventário íntimo descortinado para total apreciação sem críticas. E o adulto pergunta com sinceridade: quando foi que deixei de ser eu?
A criança responde: foi quando você não contou que tinha medo! O adolescente sorri com indisfarçável ironia e completa: quando você fingiu que sabia tudo só para não “ficar por baixo”. O adulto finalmente admite ter se obrigado a dar conta das coisas, acreditando que todos esperavam seu destaque, prêmios e conquistas.
Quando se reflete sobre a vida em momento de grande vulnerabilidade, o mundo passa a ser visto sob outro prisma ao se olhar profundamente os tesouros da alma...
Ouço novamente a sineta tocando no cemitério, agora vão fechar. A pessoa que toca aquele badalo de maneira tão peculiar deve fazer reflexões todos os dias, se a rotina não estiver consumindo sua sensibilidade.
Seguir aprendendo outros caminhos é necessário, antes que nos estremeça o susto de um alerta, e ainda que nos seja oferecida a possibilidade de um reencontro. 
Histórias vividas com importância só podem ser reconhecidas e lembradas em sua inteireza quando aceitamos nossos medos... E o sonho de ser um adulto livre. Afinal de contas esse reencontro é uma nova chance para tão frágil humanidade!     
      

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